31 de março de 2007

Lula e Bush: um casamento perfeito

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Observar a foto ao lado nos leva a refletir a respeito do destino ao qual esses dois presidentes conduzem seus respectivos países, e no caso do americano, também o mundo. Uma aliança entre essas duas personalidades, certamente, não é nada promissora. Como dar crédito a dois presidentes com biografia recente tão negativa? Felizmente, as constituições do Brasil e dos EUA, através do instituto da reeleição, só permitem uma recondução seguida ao cargo.

A guerra do Iraque ofereceu demonstrações suficientes de como os interesses pessoais e corporativos estão muito acima dos interesses globais e além do controle das Nações Unidas. Os EUA estavam à beira de uma profunda recessão econômica às vésperas da invasão do Iraque. O crescimento do setor bélico foi tão significativo no período, que afastou qualquer sombra de crise. Além disso, a indústria do petróleo, no Texas, da qual a família Bush é grande acionista, teve ganhos nunca antes contabilizados na história. Até o projeto populista do venezuelano Hugo Chaves colheu frutos provenientes da escalada dos preços do barril de petróleo.

Lula da Silva, no Brasil, conseguiu patrocinar o período de maior corrupção e aparelhamento do estado visto na história brasileira. Isso sem mencionar o retrocesso em todas as áreas da administração pública: educação, saúde, transportes, segurança - tudo está muito pior sob a administração petista. Alguns poderiam defender a estabilidade econômica como conquista, mas, certamente, as diferenças sociais poderiam ter diminuído, não fossem os projetos populistas patrocinados pelo governo.

Enquanto são desenvolvidas tecnologias para substituição do petróleo como fonte de energia - a exemplo da utilização do hidrogênio e da energia nuclear - os presidentes Bush e Lula tratam de incentivar a produção de etanol, extraído da cana-de-açúcar, para mover parte da frota americana de veículos. O projeto pode até ter algum mérito, mas a um custo muito elevado: a expansão da fronteira agrícola que avança sobre as áreas florestais. Os maiores beneficiários da iniciativa serão alguns poucos latifundiários e usineiros que, certamente, já reservaram comissões, pelo lobby executado pelo próprio presidente da República, para financiamento de campanhas eleitorais futuras do Partido dos Trabalhadores e outros da base aliada.

O que se pode aguardar de positivo da estada de Lula da Silva em Camp David é alguma discussão em torno da redução de subsídios e outras formas de protecionismo, que tanto o Brasil quanto os EUA adotam em larga escala, para proteger setores da economia. Em todo caso, a foto de Lula da Silva com George Bush consegue ser “menos pior” do que as que vemos com maior freqüência com o brasileiro ao lado do venezuelano Hugo Chaves.

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Uma breve apresentação do WEF

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O WEF é uma organização não-governamental, fundada no final de 2006, em São Paulo, no Brasil, e a sigla é abreviatura para World Education Fund, ou Fundo Mundial para a Educação. Sua função básica é o fomento da educação e da cultura, em termos gerais. Com atuação prevista em âmbito global, terá acento mundial em Genebra, na Suíça, cidade-sede das Nações Unidas e outras organizações governamentais e não-governamentais.

O objetivo primacial do WEF é a atração de investimentos, por parte de fundações, governos e outras organizações, para projetos de especialização acadêmica. As universidades estão repletas de estudantes talentosos que desejariam complementar seus estudos, através de especializações e pós-graduações, em centros de excelência no próprio país e no exterior. A grande barreira, contudo, é o financiamento desses projetos acadêmicos, aos quais o WEF visa a dar suporte.

A oferta de bolsas de estudo em universidades americanas e européias é maior do que a demanda, em função do elevado custo de manutenção (residência, alimentação, transporte, vestuário etc.) nesses destinos. Além disso, fundações como a Konrad Adenauer, da Alemanha, Ford ou Bill & Melinda Gates, dos EUA, financiam projetos e oferecem bolsas de estudos em universidades de seus respectivos países, mas carecem da divulgação de suas ofertas. O WEF, além de dar suporte aos candidatos ao aperfeiçoamento acadêmico, através de seus próprios projetos, visa a intermediar negociações entre as instituições que já atuam na área e candidatos às bolsas de estudo oferecidas.

Como o WEF se encontra em fase de construção e desenvolvimento de projetos, não possui ainda sede própria nem mesmo endereço na Internet. O idealismo e o trabalho de seus membros e dirigentes transformarão, em breve, todos os planos que ainda se encontram no papel em obra concreta e promissora. Em futuro próximo este blog informará, em detalhes, seus leitores dos avanços e conquistas da organização.

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O caos aéreo

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A edição de 28.03.2007 da revista Veja trouxe, como matéria de capa, o tormento sem fim que se tornou o ato de viajar de avião. Como causas principais para o caos, aponta a precária infra-estrutura, o descaso do governo e a ganância das companhias aéreas. Entre esses motivos, a incompetência do governo é, certamente, o pior fator.

Desde a tragédia, no fim de setembro, quando ocorreu o choque entre o Boeing da Gol e o jato Legacy, nenhuma medida governamental conseguiu amenizar o problema. O ministro da Defesa, Waldir Pires, só conseguir demonstrar irresponsabilidade e incompetência para lidar com o assunto. Enquanto isso, o presidente brasileiro não toma nenhuma atitude além de tentar impedir a instalação da CPI, que pretende apurar as responsabilidades pela crise no setor.

Em janeiro de 2006, 96,5% dos vôos da Gol e da TAM, que representam atualmente 86% do mercado, decolavam e pousavam no horário previsto. Esse índice de pontualidade, que só leva em conta atrasos superiores a quinze minutos, caiu para 45% em dezembro. O Brasil do presidente Lula conseguiu realizar mais uma grande proeza: de um padrão europeu de pontualidade o país passou para um nível pior do que o de miseráveis países africanos.

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30 de março de 2007

O regresso do idiota

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No próximo dia 15 de abril será lançado para toda América Latina "El Regreso del Idiota", o terceiro livro conjunto de Plinio Apuleyo Mendoza, Carlos Alberto Montaner e Álvaro Vargas Llosa.

Já se passaram dez anos desde que o “Manual do Perfeito Idiota Latino-americano” foi publicado e muito se sucedeu na região desde então. As tímidas reformas econômicas implementadas na década de 1990 não produziram os resultados esperados e a esquerda populista e estatizante, que os autores davam como extinta no primeiro livro, ressurgiu com grande valentia.


Mario Vargas Llosa nos dá uma boa idéia do que será o “Regresso do Idiota” neste artigo
publicado no jornal “La Nación”, da Argentina.

Esta é uma leitura obrigatória para todos os tipos de personagens com que lidamos no dia-a-dia - descritos no livro - seja no campus universitário, em uma conversa de bar ou qualquer outro momento de debate político e econômico.
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5 de março de 2007

Behold, the bus of the future

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Segue abaixo, reportagem por mim traduzida, da revista britânica The Economist, a respeito de um projeto de altíssima tecnologia, do setor de transporte coletivo. Pode não parecer, mas a foto abaixo é de um ônibus que, em breve, estará rodando nas ruas de Shanghai e Amsterdam.
(para ler a reportagem em inglês, clique sobre o link ou o logo da revista)



Contemple-se o ônibus do futuro
Sep 21st 2006
From The Economist print edition



Transporte: os trens Maglev são caros; os ônibus são baratos. O Superbus,
veículo de ruas high-tech, é um meio-termo entre os dois


Ele se parece um pouco com uma limusine de estética futurista, mas a sua função real é um tanto mais popular: o Superbus, um superônibus, é um novo sistema de transporte público, desenvolvido nos Países Baixos, pela Delft University of Technology. É um ônibus elétrico projetado para ser capaz de alternar entre pistas comuns e "superpistas", nas quais poderá alcançar velocidades de 250 Km/h (155 milhas/hora). Apresenta, assim, uma alternativa aos trens de levitação magnética (Maglev), muito mais caros. O Superbus seria dirigido do modo habitual pelas ruas e por um piloto automático nas superpistas.

Clique sobre as imagens para ampliá-las
Embora sua largura e comprimento sejam semelhantes ao de um ônibus comum, o Superbus mede somente 1,7 metro de altura ou, grosso modo, a mesma altura de um carro esportivo. Joris Melkert, manager do projeto, explica que os desenhistas conseguiram desenvolver o Superbus nessas dimensões, eliminando a coxia central existente nos ônibus atuais, uma característica de desenho vestigial, que permite aos passageiros ficarem em pé, mas que dá aos ônibus convencionais o perfil aerodinâmico de um tijolo.

O Superbus, ao contrário, tem uma porta separada para cada um dos seus 30 assentos. O teto baixo e o uso de materiais leves utilizados no moderno veículo permitem a utilização de um motor elétrico modesto: embora os engenheiros ainda não tenham decidido se o Superbus será acionado por células de combustível ou baterias, estimam que seja capaz de alcançar facilmente a aceleração de 100 Km/h em 36 segundos.

As portas individuais permitem o embarque e desembarque rápido de passageiros, atendendo à função de paradas de porta em porta, em vez de paradas predeterminadas. Esse tipo de flexibilidade é um princípio central do projeto. O tempo de vida útil de três anos, previsto para um Supebus - ao contrário dos treze anos de um ônibus Europeu padrão - também permitirá a introdução constante das últimas tecnologias conforme estejam disponíveis.

Inicialmente, poderia incluir um rastreamento baseado em satélite, para manter o Superbus no curso; sensores para escanear obstáculos até 300 metros de distância; e um sistema de suspensão inteligente que se recorde de imperfeições da pista. As superpistas também constituirão um campo de inovações tecnológicas, armazenando energia solar no verão, que será utilizada durante o inverno para aquecer as pistas e impedi-las de se congelarem ou se fenderem.

Praticamente toda a tecnologia é desenvolvida na Delft University, que aloja um dos maiores centros de engenharia aeroespacial do mundo. A sede da Agência Espacial Européia está localizada em Noordwijk, que fica nas proximidades. O departamento de design industrial da universidade utilizou as cores do Batmobile para o protótipo. O designer do projeto, Antonia Terzi, trabalhou na Fórmula 1, nos projetos dos carros da Ferrari e da Williams-BMW.

Alguns críticos questionam se a quantidade prevista de paradas do Superbus não anularia a vantagem da alta velocidade. Outros se perguntam se uma tecnologia de transporte coletivo tão avançada seria útil aos Países Baixos, ao passo que os Maglev já funcionam com sucesso em Shanghai.












O futuro do projeto ainda é incerto. A sua rota prevista, uma nova conexão entre Amsterdam e Groningen, foi recentemente descartada pelo governo holandês, embora o Superbus fosse considerado a mais exeqüível de todas as opções estudadas, que também incluíram o Maglev.

Apesar do ceticismo, o projeto já recebeu € 7 milhões (US$ 9 milhões) do governo e € 1 milhão da Connexxion, uma companhia de ônibus local. A equipe do Superbus vai empenhar-se para desenvolver um protótipo totalmente funcional para as Olimpíadas de Beijing, em 2008. A combinação de baixas emissões, alta velocidade e design atraente poderá comprovar ser este um ônibus pelo qual valerá a pena esperar.
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3 de março de 2007

continuação: El regreso del Idiota

Para ler o a primeira parte do artigo clique aqui.


O retorno do Idiota

por Alvaro Vargas Llosa *


Continuação:


A visão de mundo do Idiota, vez por outra, encontra eco entre intelectuais ilustres na Europa e nos Estados Unidos. Esses pontificadores aliviam o peso na consciência apoiando causas exóticas em países em desenvolvimento. Suas opiniões atraem fãs entre os jovens do Primeiro Mundo, para os quais a fobia da globalização oferece a perfeita oportunidade de encontrar satisfação espiritual na lamentação populista do Idiota latino-americano contra o perverso Ocidente.
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Não há nada de original no fato de intelectuais do Primeiro Mundo projetarem suas utopias sobre a América Latina. Cristóvão Colombo chegou por acaso à América em um tempo em que as idéias utópicas da Renascença estavam em voga. Desde o início, os conquistadores descreveram as terras encontradas como nada menos que paradisíacas. O mito do bom selvagem – a idéia de que os nativos do Novo Mundo tinham uma bondade imaculada, não manchada pelas maldades da civilização – impregnou a mente européia. A tendência de usar a América como uma válvula de escape para a frustração com os insuportáveis conforto e abundância da civilização ocidental continuou por séculos. Pelos anos 1960 e 1970, quando a América Latina estava repleta de organizações terroristas marxistas, esses grupos violentos encontraram apoio maciço na Europa e nos Estados Unidos entre pessoas que nunca teriam aceitado um regime totalitário no estilo de Fidel Castro em seu próprio país.
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O atual ressurgimento do Idiota latino-americano precipitou o retorno de seus correspondentes: os idiotas paternalistas europeus e americanos. Mais uma vez, importantes acadêmicos e escritores estão projetando seu idealismo, sua consciência cheia de culpa ou as queixas contra sua própria sociedade no cenário latino-americano, emprestando seu nome a abomináveis causas populistas. Ganhadores do Nobel, incluindo o dramaturgo inglês Harold Pinter, o escritor português José Saramago e o economista americano Joseph Stiglitz, lingüistas americanos como Noam Chomsky e sociólogos como James Petras, jornalistas europeus como Ignacio Ramonet e alguns de veículos como Le Nouvel Observateur, na França, Die Zeit, na Alemanha, e Washington Post, nos Estados Unidos, estão mais uma vez propagando absurdos que moldam as opiniões de milhões de leitores e santificam o Idiota latino-americano. Esse lapso intelectual seria praticamente inócuo se não tivesse conseqüências. Mas, pelo fato de legitimar um tipo de governo que está no âmago do subdesenvolvimento econômico e político da América Latina, esse lapso se constitui numa forma de traição intelectual.
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UM AMOR ESTRANGEIRO
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O exemplo mais notável da simbiose entre alguns intelectuais ocidentais e os caudilhos latino-americanos é a relação amorosa entre os idiotas americanos e europeus e Hugo Chávez. O líder venezuelano, apesar das tendências nacionalistas, não hesita em citar estrangeiros em seus pronunciamentos para fortalecer suas opiniões. Basta ver o discurso de Chávez na ONU, no ano passado, no qual exaltou o livro de Chomsky Hegemonia ou Sobrevivência: a Busca da América pelo Domínio Global. Do mesmo modo, em apresentações no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Chomsky apontou a Venezuela como um exemplo para o mundo em desenvolvimento, elogiando políticas sociais bem-sucedidas nas áreas de educação e assistência médica, que teriam resgatado a dignidade dos venezuelanos. Ele também expressou admiração pelo fato de "a Venezuela ter desafiado com sucesso os Estados Unidos, um país que não gosta de desafios, menos ainda quando são bem-sucedidos".
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Na realidade, os programas sociais da Venezuela têm se tornado, com a ajuda dos serviços de inteligência cubanos, veículos para cooptar e criar dependência social do governo. Além disso, sua eficácia é suspeita. O Centro de Documentação e Análise Social da Federação Venezuelana de Professores, instituto de pesquisas do sindicato da categoria, relatou que 80% dos domicílios venezuelanos tinham dificuldades em cobrir as despesas com comida em 2006 – a mesma proporção de quando Chávez chegou ao poder, em 1999, e quando o preço do barril de petróleo era um terço do atual. Quanto à dignidade das pessoas, a verdade é que, desde que Chávez se tornou presidente, ocorrem 10.000 homicídios por ano na Venezuela, dando ao país a maior taxa de assassinatos per capita do mundo.
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Outra nação pela qual alguns formadores de opinião americanos têm uma queda é Cuba. Em 2003, o regime de Fidel Castro executou três jovens que haviam seqüestrado um barco e tentado escapar da ilha. Fidel também mandou 75 ativistas democratas para a prisão por terem emprestado livros proibidos. Como resposta, James Petras, há anos professor de sociologia da State University of New York, em Binghamton, escreveu um artigo intitulado "A responsabilidade dos intelectuais: Cuba, os Estados Unidos e direitos humanos". Em seu texto, que foi reproduzido por várias publicações esquerdistas em todo o mundo, defendeu Havana argumentando que as vítimas estavam a serviço do governo americano.
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Conhecido simpatizante de Fidel, Ignacio Ramonet, editor do Le Monde Diplomatique, jornal francês que advoga qualquer causa sem graça que tenha origem no Terceiro Mundo, sustenta que a globalização tornou a América Latina mais pobre. A verdade é que a pobreza foi modestamente reduzida nos últimos cinco anos. A globalização gera tanta receita aos governos latino-americanos com a venda de commodities e com os impostos pagos pelos investidores estrangeiros que eles têm distribuído subsídios aos mais pobres – o que dificilmente é uma solução para a pobreza a longo prazo.
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Com duas décadas de atraso, Harold Pinter fez uma avaliação espantosa do governo sandinista em seu discurso de aceitação do Nobel em 2005. Acreditando talvez que uma defesa dos populistas do passado poderia ajudar os populistas de hoje, ele disse que os sandinistas tinham "aberto o caminho para estabelecer uma sociedade estável, decente e pluralista" e que não havia "registro de tortura" ou de "brutalidade militar oficial ou sistemática" sob o governo de Daniel Ortega, nos anos 80. Alguém pode se perguntar, então, por que os sandinistas foram apeados do poder pelo povo da Nicarágua nas eleições de 1990. Ou por que os eleitores os mantiveram fora do poder durante quase duas décadas – até Ortega se transformar num travesti político, declarando-se defensor da economia de mercado. Quanto à negação das atrocidades sandinistas, Pinter faria bem em lembrar o massacre dos índios misquitos, em 1981, na costa atlântica da Nicarágua. Sob a fachada de uma campanha de alfabetização, os sandinistas, com a ajuda de militares cubanos, tentaram doutrinar os misquitos com a ideologia marxista. Os índios recusaram-se a aceitar o controle sandinista.
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Acusando-os de apoiar os grupos de oposição baseados em Honduras, os homens de Ortega mataram cinqüenta índios, prenderam centenas e reassentaram à força outros tantos. O ganhador do Nobel deveria lembrar também que seu herói Ortega se tornou um capitalista milionário graças à distribuição dos ativos do governo e de propriedades confiscadas, que os líderes sandinistas repartiram entre si após a derrota nas eleições de 1990.
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O entusiasmo com o populismo latino-americano se estende a jornalistas dos principais veículos de comunicação. Tome como exemplo algumas matérias escritas por Juan Forero, do Washington Post. Ele é mais equilibrado e informado do que os luminares mencionados acima, mas, de vez em quando, revela um estranho entusiasmo pelo populismo do tipo que está varrendo a região. Em um artigo recente sobre a generosidade estrangeira de Chávez, ele e seu colega Peter S. Goodman criaram uma imagem positiva da forma como Chávez ajuda alguns países a se desfazer da rigidez imposta por agências multilaterais quando emprestam dinheiro para essas nações poderem quitar suas dívidas. Defensores dessa política foram citados favoravelmente e nenhuma menção foi feita ao fato de que o dinheiro do petróleo da Venezuela pertence ao povo venezuelano, e não a governos estrangeiros ou entidades alinhadas com Chávez, ou que esses subsídios têm limitações políticas. É o que se vê no ataque do presidente da Argentina, Néstor Kirchner, aos Estados Unidos e na louvação a Chávez, respostas evidentes à promessa feita por Chávez de comprar novos bônus da dívida argentina.
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O PROBLEMA COM O POPULISMO
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Observadores estrangeiros estão deixando de compreender um ponto essencial: o populismo latino-americano nada tem a ver com justiça social. No início, no século XIX, era uma reação ao estado oligárquico na forma de movimentos de massa liderados por caudilhos, cujo mantra era culpar as nações ricas pela má situação da América Latina. Esses movimentos baseavam sua legitimidade no voluntarismo, no protecionismo e na maciça redistribuição de riqueza. O resultado, por todo o século XX, foram governos inchados, burocracias sufocantes, subserviência das instituições judiciais à autoridade política e economias parasitárias.
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Populistas têm características básicas comuns: o voluntarismo do caudilho como um substituto da lei, a impugnação da oligarquia e sua substituição por outro tipo de oligarquia, a denúncia do imperialismo (com o inimigo sempre sendo os Estados Unidos), a projeção da luta de classes entre os ricos e os pobres para o terreno das relações internacionais, a idolatria do estado como uma força redentora dos pobres, o autoritarismo sob a aparência de segurança de estado e clientelismo, uma forma de paternalismo pela qual os empregos públicos – em oposição à geração de riqueza – são os canais de mobilidade social e uma forma de manter o voto cativo nas eleições. O legado dessas políticas é claro: quase metade da população da América Latina é pobre, com mais de um em cada cinco vivendo com 2 dólares ou menos por dia. E entre 1 milhão e 2 milhões de migrantes procurando os Estados Unidos e a Europa a cada ano em busca de uma vida melhor.
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Mesmo na América Latina parte da esquerda está fazendo a transição, afastando-se da Idiotice – semelhante ao tipo de transição mental que a esquerda européia, da Espanha à Escandinávia, fez décadas atrás, quando, de má vontade, abraçou a democracia liberal e a economia de mercado. Na América Latina, pode-se falar em uma "esquerda vegetariana" e uma "esquerda carnívora". A esquerda vegetariana é representada por líderes como o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, e o presidente costa-riquenho, Oscar Arias. Apesar da retórica carnívora ocasional, esses líderes têm evitado os erros da antiga esquerda, como uma barulhenta confrontação com o mundo desenvolvido e a devassidão monetária e fiscal. Eles se adaptaram à conformidade social-democrata e relutam em fazer grandes reformas, mas apresentam um passo positivo no esforço para modernizar a esquerda.
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Em contrapartida, a esquerda "carnívora" é representada por Fidel Castro, Hugo Chávez, Evo Morales e pelo presidente do Equador, Rafael Correa. Eles se prendem a uma visão marxista da sociedade e a uma mentalidade da Guerra Fria que separa o Norte do Sul e buscam explorar as tensões étnicas, particularmente na região andina. A sorte inesperada com o petróleo obtida por Hugo Chávez está financiando boa parte dessa empreitada. A gastronomia de Néstor Kirchner, da Argentina, é ambígua. Ele está situado em algum ponto entre os carnívoros e os vegetarianos. Desvalorizou a moeda, instituiu controles de preços e nacionalizou ou criou empresas estatais nos principais setores da economia. Mas tem evitado excessos revolucionários e pagou a dívida argentina com o Fundo Monetário Internacional (FMI), ainda que com a ajuda do crédito venezuelano. A posição ambígua de Kirchner tem ajudado Chávez, que preencheu o vácuo de poder no Mercosul para projetar sua influência na região.
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Estranhamente, muitos europeus e americanos "vegetarianos" apóiam os "carnívoros" da América Latina. Um exemplo é Joseph Stiglitz, que tem defendido os programas de nacionalização na Bolívia de Morales e na Venezuela de Chávez. Numa entrevista para a rádio Caracol, da Colômbia, Stiglitz disse que as nacionalizações não deveriam causar apreensão porque "empresas públicas podem ser muito bem-sucedidas, como é o caso do sistema de pensões da Seguridade Social nos Estados Unidos". Stiglitz, porém, não defendeu a nacionalização das principais empresas privadas ou de capital aberto de seu país e parece ignorar que, do México para baixo, nacionalizações estão no centro das desastrosas experiências populistas do passado.
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Stiglitz também ignora o fato de que na América Latina não há uma separação real entre as instituições do estado e o governo. Empresas estatais rapidamente se tornam canais para patronato político e corrupção. A principal empresa de telecomunicações da Venezuela tem sido uma história de sucesso desde que foi privatizada, no início dos anos 1990. O mercado de telecomunicações experimentou um crescimento de 25% nos últimos três anos. Em contrapartida, a gigante estatal de petróleo tem visto sua receita cair sistematicamente. A Venezuela produz hoje quase 1 milhão de barris de petróleo menos do que produzia nos primeiros anos desta década. No México, onde o petróleo também está nas mãos do governo, o projeto Cantarell, que representa quase dois terços da produção nacional, vai perder metade de seu rendimento nos próximos dois anos por causa da baixa capitalização.
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É realmente importante o fato de que os intelectuais americanos e europeus matam sua sede pelo exótico promovendo idiotas latino-americanos? A resposta inequívoca é sim. Uma luta cultural está sendo deflagrada na América Latina – entre aqueles que querem colocar a região no firmamento global e vê-la emergir como um importante colaborador para a cultura ocidental, à qual seu destino está associado há cinco séculos, e aqueles que não conseguem aceitar essa idéia e resistem. Apesar de a América Latina ter experimentado algum progresso nos últimos anos, essa tensão está impedindo seu desenvolvimento em comparação com outras regiões do mundo – como o Leste Asiático, a Península Ibérica ou a Europa Central – que, há pouco tempo, eram exemplos de atraso. Nas últimas três décadas, a média de crescimento anual do PIB da América Latina foi de 2,8% – contra 5,5% do Sudeste Asiático e a média mundial de 3,6%.
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Esse fraco desempenho explica por que quase 45% da população ainda está na pobreza e por que, depois de um quarto de século de regime democrático, pesquisas feitas na região revelam uma profunda insatisfação com instituições democráticas e partidos tradicionais. Enquanto o Idiota latino-americano não for relegado aos arquivos históricos – algo difícil de acontecer enquanto tantos espíritos condescendentes no mundo desenvolvido continuarem a lhe dar apoio –, isso não vai mudar.

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Ganhadores do Nobel também podem ser idiotas
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O vencedor do Prêmio Nobel ganha uma viagem de graça à Escandinávia, uma medalha de ouro, algum dinheiro e, sobretudo, uma porta para a imortalidade intelectual. Tornar-se um Nobel, contudo, não deixa ninguém imune à estupidez, especialmente quando se trata da América Latina.
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HAROLD PINTER
, Nobel de Literatura de 2005
FRASE IGNÓBIL: "Os Estados Unidos finalmente derrubaram o governo sandinista (...) Os cassinos voltaram ao país. Saúde e educação gratuitas acabaram. As grandes empresas voltaram com ímpeto" – Discurso de aceitação do Nobel, em Estocolmo
A REALIDADE: Harold, odeio lhe dar a má notícia, mas a verdade é que foram os eleitores nicaragüenses, e não o governo americano, que tiraram os sandinistas do poder.

JOSEPH STIGLITZ
, Nobel de Economia de 2001
FRASE IGNÓBIL: "O Chile teve muito sucesso nos últimos quinze anos... [O país] introduziu controles de capital. Privatizou apenas parte de suas minas de cobre, e as minas privatizadas não tiveram um desempenho melhor do que as minas estatais, sendo que os lucros das minas privatizadas foram enviados para o exterior, enquanto os lucros das minas estatais puderam ser investidos nos esforços de desenvolvimento da nação" – International Herald Tribune, 14 de fevereiro de 2007
A REALIDADE: Se as políticas que Stiglitz cita – controle de capital, nacionalização de minas e intervenção estatal na alocação dos lucros gerados pela exportação de commodities – explicam o sucesso do Chile, por que nenhum dos outros paises latino-americanos que implementaram tais políticas teve a mesma prosperidade?

GÜNTER GRASS
, Nobel de Literatura de 1999
FRASE IGNÓBIL: "Os cubanos provavelmente não notaram a ausência de direitos liberais... [porque eles ganharam] ... auto-respeito depois da revolução" – Dissent, outono de 1993
A REALIDADE: Como Günter se sentiria se trocasse seus direitos liberais burgueses, incluindo o direito de publicar livros, por um pouquinho da dignidade cubana?

RIGOBERTA MENCHU
, Nobel da Paz de 1992
FRASE IGNÓBIL: "Para pessoas comuns como eu, não há diferença entre testemunho, biografia e autobiografia... eu era uma sobrevivente (...) que tinha de convencer o mundo a olhar para as atrocidades cometidas em minha terra natal" – Entrevista coletiva na sede da ONU, em 1999
A REALIDADE: Rigoberta defendia-se das acusações de ter inventado partes de sua autobiografia para exagerar seu papel de vítima. Por que mentir se havia tantas histórias terríveis para contar?

* Alvaro Vargas Llosa, autor, junto com o colombiano Plinio Apuleyo Mendoza e o cubano Carlos Alberto Montaner, do livro "Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano", é diretor do Centro para a Prosperidade Global do Instituto Independente, em Washington. O texto foi reproduzido com permissão do Foreign Policy nº 160 (maio/junho 2007) pela revista VEJA – www.foreignpolicy.com. Copyright 2007, Carnegie Endowment for Internacional Peace.


1 de março de 2007

continuação

Onde estávamos no dia 8 de setembro próximo passado
por Gláucia Melasso *


para ler a primeira parte do artigo clique aqui

15h30

Foi marcada uma reunião com alfabetizadores. Aos poucos, bastante cansados em função de distâncias percorridas a pé, a cavalo e debaixo de um sol inclemente, foram chegando os jovens alfabetizadores xacriabás. Dos 29 convidados, reunimos cerca de 15 moças e rapazes, com uma média de idade de 18, 20 anos, em um galpão da escola. Alguns jovens denunciavam, por belas pinturas no rosto e no corpo, a etnia indígena, outros jovens usavam bonés e tênis que imitavam grifes vendidas em shopping centers. Na apresentação, nomes curiosos, para jovens representantes de uma nação indígena: havia, no grupo, 3 marias aparecidas, um romeu, um roberto, um william, um wagner...

16h
Entre muita desconfiança – por parte dos alfabetizadores – e muita ansiedade por estabelecer alguma empatia – por parte da equipe do MEB – começamos a reunião, a princípio desastrosa, pois os jovens alfabetizadores olhavam para o chão, se entreolhavam e não queriam muita conversa com as professoras de Brasília.

Uma segunda rodada de apresentações, em que sugerimos falar sobre nossas famílias, filhos, maridos, esposas, namoradas e namorados, mostrou-se mais produtiva do que as apresentações profissionais formais.
Demos início à reunião que acabou se mostrando mais eficiente numa conversa em pequenos grupos, já que o grande grupo parecia intimidar a expressão dos alfabetizadores.

Nossa equipe estimulou que os alfabetizadores refletissem sobre sua caminhada junto aos grupos de jovens e adultos alfabetizandos e expusessem as principais dificuldades que vinham enfrentando no processo, bem como quais seriam sugestões para resolver os problemas identificados.

17h20
Encerradas as discussões, reunimo-nos, novamente, no grande grupo e solicitamos que os alfabetizadores, agora já mais à vontade, conosco e com o tema da reunião, passassem a relatar, de viva voz, o resultado dos debates estabelecidos.

Neste momento, em função do entardecer e da chegada dos mosquitos, abandonamos o galpão e buscamos abrigo no laboratório de informática. Daí, lembrando Salvador Dali, começamos a nos debruçar sobre mazelas medievais em meio a modernos aparelhos multimídia e conexão de Internet via satélite.
Surrealisticamente acompanhados de computadores, os alfabetizadores passaram a relatar os principais problemas enfrentados:

1º. Muitas das aldeias xacriabás não possuem energia elétrica, o que impede que as aulas aconteçam à noite. Durante o dia, os jovens e adultos têm que trabalhar ou tentar buscar trabalho. Não existem recursos para aquisição do alandinho (lampião a gás) pois as rubricas dos projetos de financiamento para alfabetização não consideram que o alandinho seja material de alfabetização... Uma alfabetizadora, muito jovem, que trabalha há cinco meses, e que recebeu um mês de ajuda de custo pela ação alfabetizadora comprou, com seu próprio dinheiro, um alandinho usado. Este deu defeito, o gás acabou e outro pagamento não saiu. Moral da história: os poucos alunos que ainda restavam na turma estão com as aulas suspensas...

2º. Outro problema apontado insistentemente pelos alfabetizadores xacriabás é que, mesmo que exista energia elétrica ou alandinho, os alfabetizandos xacriabás – de forma idêntica a quaisquer adultos brancos, negros ou pardos – em sua maioria não consegue aprender a ler se não tiver óculos. Sem óculos, ninguém enxerga. Sem enxergar ninguém lê. Um alfabetizador fez uma pergunta muito simples e impertinente: vocês, de Brasília, não precisam de óculos?

3º. Outra questão apontada fica assim resumida – saco vazio não pára em pé e também não aprende a ler. A fome ainda é um grande problema para os xacriabás. Se vai para a escola, tem que ter merenda. Por que jovens e adultos não precisam de merenda escolar? Vários alfabetizadores lembraram do Programa Fome Zero que, no ano anterior, cadastrou todo mundo da reserva... Cerca de 7.000 cidadãos brasileiros de etnia indígena. Destes, menos de 700 receberam uma ou duas parcelas de R$ 45,00 do “Bolsa-Família” federal... Depois disso, nenhuma notícia mais...

4º. Todos os alfabetizadores colocaram em uníssono que, sem quadro negro, giz, lápis, borracha e papel é difícil ensinar. No caso dos xacriabás, soaria ridículo sugerir uma campanha comunitária para arrecadação de material. Pedir para quem? Não existe classe média na Reserva e os municípios próximos já têm sua cota de pobreza para administrar e, na pior das hipóteses, nem os políticos de plantão em ano eleitoral têm muito interesse em fazer agrados a uma população que não tem grande expressão numérica ou apelo de mídia.

5º. Outra questão cruel apontou para o pagamento mensal a que os alfabetizadores têm direito. Muitos não receberam, em vários meses de pagamento, nenhum recurso e os que estão recebendo enfrentam outra dificulidade, como dizem eles. O Banco do Brasil mais próximo da Reserva fica a quase 50 quilômetros de distância. De carro, mesmo em estradas de terra, até parece perto, mas a pé ou no lombo de um burro ou de um cavalo velho e doente... a conversa é outra. Tem ônibus? Tem, mas quem tem dinheiro para pagar ônibus?!?!?!

"A persistência da memória", de Salvador Dali, 1931

18h10
Após a exposição dos problemas, por parte dos alfabetizadores, tentamos entabular uma tempestade de idéias sobre alternativas, mas não houve, por parte do grupo, necessidade de muito aprofundamento filosófico. As conclusões da reunião:
onde tem escuridão, tem que botar luz;
onde tem fome, tem que ter comida;
onde não tem visão, tem que arrumar óculos;
onde não tem material, é necessário providenciá-lo;
quem não recebeu pagamento, tem que receber.
Simples assim.

Ainda tentamos – nós, professoras de Brasília – fazer um discurso sobre mobilização da comunidade, políticas públicas, união de forças, pressão política, exercício da cidadania. Não convenceu. Nossa pretensa figura de intelectual orgânico, como definiu Gramsci, não sensibilizou os jovens xacriabás, que, àquela altura do dia, estavam mais preocupados com o retorno às suas casas em meio à escuridão.

Encerramos a reunião com um convite para um lanche regado a Coca-Cola, salgadinhos e biscoitos recheados comprados na mercearia da Reserva. Uma alfabetizadora não quis a Coca – Cola, não era light...

18h30
Os alfabetizadores, apressados, começaram a se dispersar, jogando seus copos descartáveis no chão, o que não fez muita diferença, pois o lixo acumulado em meio às casas, na reserva, é muito grande. O próprio funcionário da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) joga seu lixo no quintal e afirma que – de vez em quando recolhe – e joga pelas estradas.

O cacique veio até nós dar as boas vindas. Chegou de motocicleta, com aliança de ouro na mão esquerda, denunciando ser casado, apesar de bastante jovem. Chegamos a comentar a respeito de problemas existentes na Reserva e ele também reconhece que é tudo muito difícil, mas aposta que nas próximas eleições municipais seu irmão, candidato a prefeito, será o primeiro xacriabá a assumir o município de São João das Missões e que, a partir daí, tudo vai mudar.

19h
Acompanhados dos supervisores e da coordenadora local, começamos o percurso de visita a uma turma de alfabetização. Pertinho. Apenas 12 quilômetros separavam a Sede da Reserva da Aldeia Prata. Pertinho, pertinho... Uma hora de carro por uma picada de terra no meio do cerrado–caatinga de Minas Gerais.
Parecia que o feriado da Independência era um dia com 48 horas. Acompanhadas pelo cansaço e preocupação, além de reflexões sobre o sentido do trabalho com educação de jovens e adultos, sobre a ausência de perspectivas de vida mais digna para os jovens e crianças, os depoimentos sem esperança ainda ressoando, “meu aluno quer aprender só a assinar o nome, para poder ir para São Paulo cortar cana”, relatou um alfabetizador... “Eu quero é tirar meus meninos desta roça e morar na cidade. Não quero esta minha vida para eles” - afirmou uma mãe - chegamos à turma de alfabetização que seria supervisionada.

20h
Fomos recepcionados pela comunidade da Aldeia Prata, capitaneada pelo chefe da aldeia. Todos com cocares de cartolina e papel crepom, batendo palmas e cantando para recepcionar as professoras de Brasília.
Tanta alegria, calor humano e sorrisos renovaram os ânimos de nossa equipe e entramos na sala de alfabetização. Cerca de 30 homens e mulheres na faixa de seus 40, 50 anos estavam devidamente sentados à frente de uma professora jovem, aproximadamente 18 anos de idade. Nesta turma tinha um quadro negro, alguns cadernos e lápis, iluminação razoável (uma lâmpada), ausência de óculos e merenda e, a despeito de tudo, mais de metade do grupo já estava lendo e escrevendo.

Milagre?!?!? Genialidade!??!! Probabilidade!??! Força de vontade!??! Não conseguimos entender, pois nossa expectativa seria o fracasso total do programa de alfabetização na Reserva Xacriabá, mas o que encontramos foi um sucesso parcial. Depois soubemos que a alfabetizadora, além de dar suas aulas diariamente, ainda vai à casa dos alunos dar aula particular aos que não enxergam ou que têm mais dificulidade. A alfabetizadora, conforme orientada, também faz seus planos de aula, com muita disciplina e coerência, apesar de grafar metalógica em vez de metodologia. Mas quem se importa? O que importa o pedagogês da nossa equipe se o pessoal está satisfeito ?

Ao final da visita fizeram uma apresentação ensaiada, com músicas e coreografia regionais. Despedimo-nos, com certa emoção, prometendo um dia voltar.

22h
A equipe dormiu sem lembrar que o dia seguinte seria o "Dia Internacional da Alfabetização".

8 de setembro, 6h00
Começou mais um dia na Reserva, barulhento, com muita curiosidade da comunidade sobre nossa palhosquinha azul. A barraca plástica de camping gerou algum estranhamento e muito riso: “e não é que tem gente morando dentro disso aí?”

8h
Outra reunião. Desta vez com os supervisores pedagógicos e a coordenadora local. Revisamos os problemas, alternativas de solução, encaminhamentos. Nenhuma grande luz no final do túnel, mas quem sabe, uma esperança de sensibilização por parte de autoridades, governos municipal, estadual, federal, organizações não-governamentais... Quem sabe? Chegamos à conclusão que a pedagogia libertadora, sem a mínima infra-estrutura que dê suporte, não trará grande impacto na vida desta comunidade. Entendemos também, que alfabetização não rima mais com revolução.

10h
A fotógrafa de nossa equipe, imbuída da missão de registrar cenas peculiares da cultura xacriabá convenceu um grupo a fazer uma dança tradicional. Um grupo de 8 homens – jovens – capitaneados por um mais velho, fez as pinturas no corpo com os símbolos xacriabás, vestiu roupas confeccionadas em palha e fez a dança e as músicas, cantadas na língua xacriabá em meio a uma lagoa seca, no meio do cerrado-caatinga.

Este grupo está tentando resgatar sua cultura, aprender novamente a quase extinta língua xacriabá e o indígena mais velho, analfabeto, diz que não quer se alfabetizar. “Pra que? Vivi até agora, tenho meu saber, fique com o seu. Aprender as letras vai me ajudar na roça de mandioca? Vai fazer o Velho Chico (Rio São Francisco) encher?, perguntou ele. Não tivemos maiores argumentos. Nesse momento tivemos certeza que a pergunta: “para que aprender a ler e a escrever” não era meramente retórica, mas uma profunda dúvida filosófica...

A dança dos xacriabás foi simples e bonita, mas o cenário de nossa guernica indígena pareceu ainda mais melancólico. Depois da dança, para onde vão estes 8 homens? Vão tirar a pintura e continuar na roça até um dia pegar um ônibus e sobreviver como migrantes na periferia de alguma grande cidade.
Ao final, o grupo nos ofereceu alguns artesanatos, nós compramos e o indígena mais velho pediu um pagamento pela dança oferecida a nós, afinal, não podia perder o dia. Nós pagamos.

15h
De volta ao município de Januária e tentando capturar o sentido de nossa visita à Reserva dos Xacriabás, nossa equipe, composta por três pedagogas e uma jornalista, estava em estado de perplexidade... De um lado a certeza de que método pedagógico adotado - ver, julgar e agir – que consiste em conhecimento, crítica e análise da realidade e posterior tomada de decisão em direção à ação coletiva e cidadã faz sentido. De outro lado, a dureza da realidade e, a certeza, também, de que as dificuldades não serão superadas por algumas pessoas de boa vontade.

Entretanto, se alfabetização não rima mais com revolução, a alfabetização, como processo pedagógico é o momento de encontro de seres humanos, de pessoas que, durante seis, oito meses estarão reunidas por um objetivo comum, trocando idéias, queixando-se das dificulidades, tentando perseguir um pequeno ideal.

Será que o fato de criar turmas de alfabetização, por si só, já pode ser considerado algum evento relevante para uma comunidade? Será que a formação de jovens como alfabetizadores pode abrir outras perspectivas de vida para eles? Será que a constatação dos problemas por parte dos jovens xacriabás poderá gerar tomadas de posição cidadãs?

18h
Alguém lembrou que era o Dia Internacional da Alfabetização. Será que era mesmo um bom dia para comemorar o evento? Para nós, da equipe do MEB, foi um bom dia para começar um movimento de re-significação do conceito de alfabetização.

Hoje, 19h
Vale concluir este relato com uma frase de D. Helder Câmara:

"Um dos meus anseios de chegar ao infinito é a esperança de que, ao menos de lá, as paralelas se encontrem!"
glaucia

* Gláucia Melasso, educadora, é diretora do Movimento de Educação de Base (MEB) e atua como assessora de Planejamento e Relações Institucionais.

gláucia