1 de março de 2007

continuação

Onde estávamos no dia 8 de setembro próximo passado
por Gláucia Melasso *


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15h30

Foi marcada uma reunião com alfabetizadores. Aos poucos, bastante cansados em função de distâncias percorridas a pé, a cavalo e debaixo de um sol inclemente, foram chegando os jovens alfabetizadores xacriabás. Dos 29 convidados, reunimos cerca de 15 moças e rapazes, com uma média de idade de 18, 20 anos, em um galpão da escola. Alguns jovens denunciavam, por belas pinturas no rosto e no corpo, a etnia indígena, outros jovens usavam bonés e tênis que imitavam grifes vendidas em shopping centers. Na apresentação, nomes curiosos, para jovens representantes de uma nação indígena: havia, no grupo, 3 marias aparecidas, um romeu, um roberto, um william, um wagner...

16h
Entre muita desconfiança – por parte dos alfabetizadores – e muita ansiedade por estabelecer alguma empatia – por parte da equipe do MEB – começamos a reunião, a princípio desastrosa, pois os jovens alfabetizadores olhavam para o chão, se entreolhavam e não queriam muita conversa com as professoras de Brasília.

Uma segunda rodada de apresentações, em que sugerimos falar sobre nossas famílias, filhos, maridos, esposas, namoradas e namorados, mostrou-se mais produtiva do que as apresentações profissionais formais.
Demos início à reunião que acabou se mostrando mais eficiente numa conversa em pequenos grupos, já que o grande grupo parecia intimidar a expressão dos alfabetizadores.

Nossa equipe estimulou que os alfabetizadores refletissem sobre sua caminhada junto aos grupos de jovens e adultos alfabetizandos e expusessem as principais dificuldades que vinham enfrentando no processo, bem como quais seriam sugestões para resolver os problemas identificados.

17h20
Encerradas as discussões, reunimo-nos, novamente, no grande grupo e solicitamos que os alfabetizadores, agora já mais à vontade, conosco e com o tema da reunião, passassem a relatar, de viva voz, o resultado dos debates estabelecidos.

Neste momento, em função do entardecer e da chegada dos mosquitos, abandonamos o galpão e buscamos abrigo no laboratório de informática. Daí, lembrando Salvador Dali, começamos a nos debruçar sobre mazelas medievais em meio a modernos aparelhos multimídia e conexão de Internet via satélite.
Surrealisticamente acompanhados de computadores, os alfabetizadores passaram a relatar os principais problemas enfrentados:

1º. Muitas das aldeias xacriabás não possuem energia elétrica, o que impede que as aulas aconteçam à noite. Durante o dia, os jovens e adultos têm que trabalhar ou tentar buscar trabalho. Não existem recursos para aquisição do alandinho (lampião a gás) pois as rubricas dos projetos de financiamento para alfabetização não consideram que o alandinho seja material de alfabetização... Uma alfabetizadora, muito jovem, que trabalha há cinco meses, e que recebeu um mês de ajuda de custo pela ação alfabetizadora comprou, com seu próprio dinheiro, um alandinho usado. Este deu defeito, o gás acabou e outro pagamento não saiu. Moral da história: os poucos alunos que ainda restavam na turma estão com as aulas suspensas...

2º. Outro problema apontado insistentemente pelos alfabetizadores xacriabás é que, mesmo que exista energia elétrica ou alandinho, os alfabetizandos xacriabás – de forma idêntica a quaisquer adultos brancos, negros ou pardos – em sua maioria não consegue aprender a ler se não tiver óculos. Sem óculos, ninguém enxerga. Sem enxergar ninguém lê. Um alfabetizador fez uma pergunta muito simples e impertinente: vocês, de Brasília, não precisam de óculos?

3º. Outra questão apontada fica assim resumida – saco vazio não pára em pé e também não aprende a ler. A fome ainda é um grande problema para os xacriabás. Se vai para a escola, tem que ter merenda. Por que jovens e adultos não precisam de merenda escolar? Vários alfabetizadores lembraram do Programa Fome Zero que, no ano anterior, cadastrou todo mundo da reserva... Cerca de 7.000 cidadãos brasileiros de etnia indígena. Destes, menos de 700 receberam uma ou duas parcelas de R$ 45,00 do “Bolsa-Família” federal... Depois disso, nenhuma notícia mais...

4º. Todos os alfabetizadores colocaram em uníssono que, sem quadro negro, giz, lápis, borracha e papel é difícil ensinar. No caso dos xacriabás, soaria ridículo sugerir uma campanha comunitária para arrecadação de material. Pedir para quem? Não existe classe média na Reserva e os municípios próximos já têm sua cota de pobreza para administrar e, na pior das hipóteses, nem os políticos de plantão em ano eleitoral têm muito interesse em fazer agrados a uma população que não tem grande expressão numérica ou apelo de mídia.

5º. Outra questão cruel apontou para o pagamento mensal a que os alfabetizadores têm direito. Muitos não receberam, em vários meses de pagamento, nenhum recurso e os que estão recebendo enfrentam outra dificulidade, como dizem eles. O Banco do Brasil mais próximo da Reserva fica a quase 50 quilômetros de distância. De carro, mesmo em estradas de terra, até parece perto, mas a pé ou no lombo de um burro ou de um cavalo velho e doente... a conversa é outra. Tem ônibus? Tem, mas quem tem dinheiro para pagar ônibus?!?!?!

"A persistência da memória", de Salvador Dali, 1931

18h10
Após a exposição dos problemas, por parte dos alfabetizadores, tentamos entabular uma tempestade de idéias sobre alternativas, mas não houve, por parte do grupo, necessidade de muito aprofundamento filosófico. As conclusões da reunião:
onde tem escuridão, tem que botar luz;
onde tem fome, tem que ter comida;
onde não tem visão, tem que arrumar óculos;
onde não tem material, é necessário providenciá-lo;
quem não recebeu pagamento, tem que receber.
Simples assim.

Ainda tentamos – nós, professoras de Brasília – fazer um discurso sobre mobilização da comunidade, políticas públicas, união de forças, pressão política, exercício da cidadania. Não convenceu. Nossa pretensa figura de intelectual orgânico, como definiu Gramsci, não sensibilizou os jovens xacriabás, que, àquela altura do dia, estavam mais preocupados com o retorno às suas casas em meio à escuridão.

Encerramos a reunião com um convite para um lanche regado a Coca-Cola, salgadinhos e biscoitos recheados comprados na mercearia da Reserva. Uma alfabetizadora não quis a Coca – Cola, não era light...

18h30
Os alfabetizadores, apressados, começaram a se dispersar, jogando seus copos descartáveis no chão, o que não fez muita diferença, pois o lixo acumulado em meio às casas, na reserva, é muito grande. O próprio funcionário da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) joga seu lixo no quintal e afirma que – de vez em quando recolhe – e joga pelas estradas.

O cacique veio até nós dar as boas vindas. Chegou de motocicleta, com aliança de ouro na mão esquerda, denunciando ser casado, apesar de bastante jovem. Chegamos a comentar a respeito de problemas existentes na Reserva e ele também reconhece que é tudo muito difícil, mas aposta que nas próximas eleições municipais seu irmão, candidato a prefeito, será o primeiro xacriabá a assumir o município de São João das Missões e que, a partir daí, tudo vai mudar.

19h
Acompanhados dos supervisores e da coordenadora local, começamos o percurso de visita a uma turma de alfabetização. Pertinho. Apenas 12 quilômetros separavam a Sede da Reserva da Aldeia Prata. Pertinho, pertinho... Uma hora de carro por uma picada de terra no meio do cerrado–caatinga de Minas Gerais.
Parecia que o feriado da Independência era um dia com 48 horas. Acompanhadas pelo cansaço e preocupação, além de reflexões sobre o sentido do trabalho com educação de jovens e adultos, sobre a ausência de perspectivas de vida mais digna para os jovens e crianças, os depoimentos sem esperança ainda ressoando, “meu aluno quer aprender só a assinar o nome, para poder ir para São Paulo cortar cana”, relatou um alfabetizador... “Eu quero é tirar meus meninos desta roça e morar na cidade. Não quero esta minha vida para eles” - afirmou uma mãe - chegamos à turma de alfabetização que seria supervisionada.

20h
Fomos recepcionados pela comunidade da Aldeia Prata, capitaneada pelo chefe da aldeia. Todos com cocares de cartolina e papel crepom, batendo palmas e cantando para recepcionar as professoras de Brasília.
Tanta alegria, calor humano e sorrisos renovaram os ânimos de nossa equipe e entramos na sala de alfabetização. Cerca de 30 homens e mulheres na faixa de seus 40, 50 anos estavam devidamente sentados à frente de uma professora jovem, aproximadamente 18 anos de idade. Nesta turma tinha um quadro negro, alguns cadernos e lápis, iluminação razoável (uma lâmpada), ausência de óculos e merenda e, a despeito de tudo, mais de metade do grupo já estava lendo e escrevendo.

Milagre?!?!? Genialidade!??!! Probabilidade!??! Força de vontade!??! Não conseguimos entender, pois nossa expectativa seria o fracasso total do programa de alfabetização na Reserva Xacriabá, mas o que encontramos foi um sucesso parcial. Depois soubemos que a alfabetizadora, além de dar suas aulas diariamente, ainda vai à casa dos alunos dar aula particular aos que não enxergam ou que têm mais dificulidade. A alfabetizadora, conforme orientada, também faz seus planos de aula, com muita disciplina e coerência, apesar de grafar metalógica em vez de metodologia. Mas quem se importa? O que importa o pedagogês da nossa equipe se o pessoal está satisfeito ?

Ao final da visita fizeram uma apresentação ensaiada, com músicas e coreografia regionais. Despedimo-nos, com certa emoção, prometendo um dia voltar.

22h
A equipe dormiu sem lembrar que o dia seguinte seria o "Dia Internacional da Alfabetização".

8 de setembro, 6h00
Começou mais um dia na Reserva, barulhento, com muita curiosidade da comunidade sobre nossa palhosquinha azul. A barraca plástica de camping gerou algum estranhamento e muito riso: “e não é que tem gente morando dentro disso aí?”

8h
Outra reunião. Desta vez com os supervisores pedagógicos e a coordenadora local. Revisamos os problemas, alternativas de solução, encaminhamentos. Nenhuma grande luz no final do túnel, mas quem sabe, uma esperança de sensibilização por parte de autoridades, governos municipal, estadual, federal, organizações não-governamentais... Quem sabe? Chegamos à conclusão que a pedagogia libertadora, sem a mínima infra-estrutura que dê suporte, não trará grande impacto na vida desta comunidade. Entendemos também, que alfabetização não rima mais com revolução.

10h
A fotógrafa de nossa equipe, imbuída da missão de registrar cenas peculiares da cultura xacriabá convenceu um grupo a fazer uma dança tradicional. Um grupo de 8 homens – jovens – capitaneados por um mais velho, fez as pinturas no corpo com os símbolos xacriabás, vestiu roupas confeccionadas em palha e fez a dança e as músicas, cantadas na língua xacriabá em meio a uma lagoa seca, no meio do cerrado-caatinga.

Este grupo está tentando resgatar sua cultura, aprender novamente a quase extinta língua xacriabá e o indígena mais velho, analfabeto, diz que não quer se alfabetizar. “Pra que? Vivi até agora, tenho meu saber, fique com o seu. Aprender as letras vai me ajudar na roça de mandioca? Vai fazer o Velho Chico (Rio São Francisco) encher?, perguntou ele. Não tivemos maiores argumentos. Nesse momento tivemos certeza que a pergunta: “para que aprender a ler e a escrever” não era meramente retórica, mas uma profunda dúvida filosófica...

A dança dos xacriabás foi simples e bonita, mas o cenário de nossa guernica indígena pareceu ainda mais melancólico. Depois da dança, para onde vão estes 8 homens? Vão tirar a pintura e continuar na roça até um dia pegar um ônibus e sobreviver como migrantes na periferia de alguma grande cidade.
Ao final, o grupo nos ofereceu alguns artesanatos, nós compramos e o indígena mais velho pediu um pagamento pela dança oferecida a nós, afinal, não podia perder o dia. Nós pagamos.

15h
De volta ao município de Januária e tentando capturar o sentido de nossa visita à Reserva dos Xacriabás, nossa equipe, composta por três pedagogas e uma jornalista, estava em estado de perplexidade... De um lado a certeza de que método pedagógico adotado - ver, julgar e agir – que consiste em conhecimento, crítica e análise da realidade e posterior tomada de decisão em direção à ação coletiva e cidadã faz sentido. De outro lado, a dureza da realidade e, a certeza, também, de que as dificuldades não serão superadas por algumas pessoas de boa vontade.

Entretanto, se alfabetização não rima mais com revolução, a alfabetização, como processo pedagógico é o momento de encontro de seres humanos, de pessoas que, durante seis, oito meses estarão reunidas por um objetivo comum, trocando idéias, queixando-se das dificulidades, tentando perseguir um pequeno ideal.

Será que o fato de criar turmas de alfabetização, por si só, já pode ser considerado algum evento relevante para uma comunidade? Será que a formação de jovens como alfabetizadores pode abrir outras perspectivas de vida para eles? Será que a constatação dos problemas por parte dos jovens xacriabás poderá gerar tomadas de posição cidadãs?

18h
Alguém lembrou que era o Dia Internacional da Alfabetização. Será que era mesmo um bom dia para comemorar o evento? Para nós, da equipe do MEB, foi um bom dia para começar um movimento de re-significação do conceito de alfabetização.

Hoje, 19h
Vale concluir este relato com uma frase de D. Helder Câmara:

"Um dos meus anseios de chegar ao infinito é a esperança de que, ao menos de lá, as paralelas se encontrem!"
glaucia

* Gláucia Melasso, educadora, é diretora do Movimento de Educação de Base (MEB) e atua como assessora de Planejamento e Relações Institucionais.

gláucia

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